Amazônia: a outra ocupação possível

Estudos antropológicos e arqueológicos apontam a possibilidade de simbiose entre ser humano e natureza. Práticas que remontam a 12 mil anos – roçados, hortas, açaizais e caça – definiram a paisagem da floresta de hoje, e podem viabilizar a do amanhã

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Por Carolina Pinheiro e Maurício de Paiva, na InfoAmazônia

Matas e solos compõem um espólio incorporado por comunidades diversificadas, que se espalharam por toda a bacia amazônica ao longo do tempo. Povos originários, quilombolas, beiradeiros e ribeirinhos são detentores do conhecimento ecológico tradicional e das práticas de manejo e cultivo do ambiente. O uso adaptado e correto do fogo, nesse contexto, gera bem-estar ao meio, garantindo que inúmeras espécies da flora prosperem e se multipliquem tal qual os restos de animais e vegetais, tocos e frutos se amontoam sobre o chão. 

A serrapilheira, camada de matéria orgânica cumulativa, é um banco de sementes e um poderoso isolante térmico. Sua microbiota induz o processo de decomposição dos nutrientes, provocando o seu reaproveitamento e estimulando a capacidade de regeneração ecossistêmica. A floresta amazônica é resiliente – um corpo vivo meio indomável, meio domesticado. 

Sua cobertura vegetal, cerca de 300 milhões de hectares em solo brasileiro, guarda um universo que beira o infinito. Apesar dos recordes de desmatamento das últimas décadas, a maior floresta tropical do planeta se exibe em números: possui 13% das espécies arbóreas do mundo, entre as quais 227 são consideradas hiperdominantes. Plantas que têm um significado econômico e cultural importante para as populações tradicionais. 

O fruto em mãos do patauá, uma espécie de palmeira considerada hiperdominante Foto: Maurício De Paiva/InfoAmazonia
Coleta dos pesados cachos do patauá na região de Cametá, no Pará Foto: Maurício De Paiva/InfoAmazonia

O arqueólogo Eduardo Góes Neves esclarece que seis das 10 espécies mais hiperdominantes do bioma são palmeiras – entre elas, os açaís do mato (Euterpe precatoria) e do pará (Euterpe oleracea); o patauá (Oenocarpus bataua); e o murumuru (Astrocaryum murumuru). Tal paisagem resulta do processo de seleção realizado pelos povos indígenas ao longo de aproximadamente 12 mil anos. “Existe uma correlação entre estas práticas de cultivo antigas e a produção do fator de hiperdominância que vemos hoje. É uma forma de construir paisagens que opera em uma lógica totalmente diferente. A noção é de abertura para a natureza, e não de fechamento”, esclarece Eduardo. O professor e diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo é reconhecido como um dos maiores estudiosos do território amazônico da contemporaneidade.

Para além, o conhecimento empírico tradicional desmantela a prerrogativa de que a região era uma terra sem homens. A falsa ideia de haver vazio populacional em meio a um deserto verde foi disseminada durante a ditadura militar no país que, atualmente, ocupa uma posição estratégica na agenda global de enfrentamento do colapso climático. “Temos um problema ambiental muito sério, cuja origem é social”, comenta o arqueólogo. Sabe-se que cerca de 10 milhões de pessoas moravam na Amazônia em 1491. “Estamos falando do final do século XV da Era Comum (EC), antes dos europeus chegarem a essas terras”, prossegue. 

A ciência comprova que a sociedade ocidental corre contra o relógio enquanto os povos originários são detentores dos saberes e fazeres para reverter o processo acionado por motosserras e incêndios criminosos. “Alguém acende o fósforo, visto que uma floresta ombrófila latifoliada, densa como a Amazônia, não queima sozinha em circunstâncias normais”, relata Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima. Se por um lado, o fogo é um dos principais agentes de degradação, pelo outro, ele é ferramenta de construção.

Fogo contra fogo

“O dono do fogo sempre foi o sol. Ninguém podia entrar lá porque é muito quente. Até que Deus tirou um de seus pedaços e o trouxe à terra. O jacaré, por desejar também o dia, além de sua vida na escuridão da noite, roubou o fogo e o escondeu na garganta. Os pássaros, indignados, sobretudo os de cor preta, como o Japiim, voaram no encalço do réptil e o bicaram até que conseguiram furar o jacaré. Ao descobrirem brechas para a beleza e o acolhimento de suas chamas, eles trouxeram o fogo à humanidade” — Sebastião Mário Lemos Duarte, do povo Tukano

De acordo com a narrativa mítica do povo Tukano, que habita a região do Alto Rio Negro, no Amazonas, assim nasceu o elemento que sempre foi – e continua a ser – uma tecnologia de manejo da floresta. A história, contada por seu Sebastião, revela traços da cultura ancestral passada de geração para geração em Taracuá, onde o professor indígena da rede pública reside com a esposa, dona Clara Desana, exímia ceramista, e a família. A comunidade integra o chamado “triângulo tukano”, termo referente à área geográfica demarcada pelos três distritos salesianos na bacia do rio Uaupés: Taracuá, Yauaretê e Pari-Cachoeira. Parte da população, estimada em 20 mil pessoas, reside também em centros urbanos, como São Gabriel da Cachoeira,  município mais indígena do Brasil. 

Fim de tarde na beira do Rio Uaupés, na comunidade de Taracuá, que pertence ao município de São Gabriel da Cachoeira. Em Taracuá, que no século passado teve forte presença dos missionários salesianos, vivem hoje famílias de diferentes etnias, mas sobressai-se a etnia Tukano. Foto: Maurício De Paiva/InfoAmazonia

Este território de abundância, localizado em uma região que ainda conta com uma matriz de conservação florestal representativa, é um dos berços da civilização brasileira. Vinte e três etnias coabitam um ambiente onde a cadeia de relações, a organização social e a conexão dos ameríndios com a floresta revelam traços marcantes e de valor inestimável do patrimônio cultural do país. “Na Amazônia, os limites entre natureza e cultura não estão bem definidos, e este é um dado imprescindível para que possamos traçar um olhar para o futuro”, relata o arqueólogo Carlos “Tijolo” Augusto da Silva, professor doutor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). 

A pergunta sobre impactos ambientais, no Alto Rio Negro, abre janela para que os indígenas respondam de imediato: “A Amazônia sofre desde a chegada dos colonizadores. São mais de 500 anos de extração”. Em seus relatos, esclarecem: “Nos chamam de extrativistas. Equivocam-se. Somos os semeadores da floresta”. O manejo do mundo é realizado por estes povos há milênios e o uso do fogo por eles estimulou o ambiente, alterando a sua fertilidade de maneira permanente e positiva.

As Terras Pretas de Índio (TPI) são um exemplo do quanto a experiência de controle do elemento tornou-se ímpar nas relações sociais. Essas terras de rara fertilidade muitas vezes servem como substrato para a horticultura doméstica e agricultura de coivara. “Uma característica das TPI é que elas não perdem os nutrientes, mantendo-se férteis ao longo do tempo”, enfatiza Eduardo Neves. 

As chamadas Terras Pretas de Índio (TPI) são solos oriundos da atividade humana indígena no passado, e que começaram a se formar há mais ou menos cinco mil anos. A partir de dois mil e quinhentos anos, eles se tornam disseminados por quase toda a Bacia Amazônica. Foto: Maurício De Paiva/InfoAmazonia

Legados antrópicos de habitantes do passado, as TPI resultam de processos centenários de formação de solos, em superfícies terrestres enriquecidas pela dinâmica de assentamento das sociedades pré-colombianas na Amazônia. Ocupavam, sobretudo, áreas de queimadas frequentes associadas a antigas práticas agrícolas. A região foi um centro independente de domesticação e cultivo de plantas. “Mais de 150 espécies”, diz Eduardo.

Entre algumas plantas domesticadas de forma pioneira na Amazônia estão a pupunha (única palmeira geneticamente modificada), o cacau, o amendoim, o ingá, a batata doce (única planta que foi levada para o Pacífico antes da chegada dos europeus), o guaraná, o açaí, o abacaxi e a mandioca, base da dieta regional. Eleita o alimento do século pela ONU, a mandioca pode ser considerada o “cordão umbilical” das roças no Alto Rio Negro. 

Na roça, menino indígena acompanha familiares no plantio de maniva. O manejo do mundo é realizado pelos povos originários há milênios e a mandioca, eleita o alimento do século pela ONU, é o cordão umbilical das roças no Alto Rio Negro. Foto: Maurício de Paiva/InfoAmazonia

“Algumas destas plantas são árvores ou raízes. Há poucas sementes e cereais, e isso é interessante porque elas têm ciclos de cultivos muito diferentes. A mandioca é armazenada na própria roça, por exemplo. Não existe uma época específica de colheita. Acho que essa relação que se comunga com essas plantas têm implicação na história profunda destes povos”, pondera Eduardo.

As roças do rio Negro são áreas dinâmicas, além de espaços de socialização das comunidades, assim como as casas de fornos. Caroline Caromano, arqueóloga e pesquisadora do Naturalis Biodiversity Center (Países Baixos), explica que estes são locais de intensa atividade construtiva de paisagens. “É onde as mulheres separam colheitas, frutos, sementes, preparam alimentos e bebidas”, diz. Também nelas são fabricadas as peças cerâmicas pelas artesãs, em etapas sequenciais à sua chegada da floresta com os waturás, cestos cargueiros trançados a mão, geralmente pelos homens, carregados de argila. 

Tesouros da agrobiodiversidade

Os povos indígenas possuem uma expressiva diversidade de cultivares, visível já nos quintais das casas de moradia. Variados tipos de plantas, tais como pimenta, banana, abacaxi, goiaba, cupuaçu, abacate, jambo, umari, além do açaí e coco, estão entre as espécies que se integram a pomares, hortas e canteiros. O agrossistema que envolve este ambiente – vital para a manutenção do modo de vida e da segurança alimentar das comunidades – traduz também uma ideia e forma de se relacionar com o mundo. 

“É preciso conhecer as estações, os períodos da enchente, vazante, verão, chuva, escassez, fartura: tudo isso observado através de plantas e animais e estrelas do céu”, relata Rosi Waikhon, multiartista e antropóloga indígena do povo Pirá-Tapuia em sua tese de doutorado.

O ciclo contínuo roça–capoeira–floresta, associado ao plantio de temperos, ervas e hortaliças, caracteriza um modelo inovador de manejo, que garantiu a estas pessoas, no decorrer de milênios, adaptabilidade a novas condições sejam ecológicas ou econômicas. São espaços compostos por agroflorestas modernas, que resultam da variabilidade sociocultural do passado na região. “A dieta baseada na diversidade de plantas, frutos e raízes é um padrão muito antigo em diferentes lugares da Amazônia”, ratifica Eduardo.

Nesse contexto, a presença de carvão e fragmentos cerâmicos remetem ao papel central do fogo. Em Taracuá, a cerâmica confeccionada pela Associação das Mulheres Indígenas da Região de Taracuá (Amirt) é uma das mais importantes e valorizadas da cadeia produtiva da arte indígena rionegrina. O período de produção dura de 10 a 12 dias do momento inicial, quando as ceramistas pedem autorização à avó da argila para retirada do elemento de sua fonte, à defumação, procedimento necessário para deixar as peças pretas – característica que junto com os desenhos em negativo é marca da tradição oleira da bacia do rio Uaupés. As peças passam por diversas etapas repletas de cuidados e minúcias impressas na cultura que tem como princípio a escola do olhar sobre a floresta. 

nas cercanias da margem direita do rio Amazonas, morador da comunidade Santa Rita de Cássia do Lago da Valéria, também de Parintins, exibe fragmento arqueológico cerâmico. Foto: Maurício de Paiva/InfoAmazonia
Ribeirinha da região de Parintins segura um artefato de estilo zoomorfo

Di’i Mahso (Vovó argila) é a guardiã das jazidas de argila ou tuiuca, locais sagrados para as oleiras. De acordo com a cosmologia do povo Tukano, a entidade precisa permitir a extração da matéria-prima após conversa na qual a artesã esclarece sobre o porquê e para quê está coletando aquele material. O processo de fabricação das peças é acompanhado do manejo paciente do fogo. A ceramista acende, atiça e depois acalma as chamas. No decorrer da atividade incessante de maneio, as labaredas vão sendo amaciadas até que se alcance o resultado desejado. Uma verdadeira arte do fogo.

Ao longo de quase duas semanas, a paisagem se transforma. De um lado, a limpeza do leito dos igarapés, a coleta da argila, a extração da casca de um conjunto de árvores chamadas de caraipé, na região, e de noãgu, na língua Tukano. De outro, a criação de novas terras pretas de índio. As cinzas das diferentes variedades de caraipé são utilizadas para temperar a argila (reduzir a sua plasticidade). 

“Para nós, povos indígenas, o fogo é parte de quem somos”, diz Elizangela Baré, uma liderança feminina ativa na Terra Indígena Cué-Cué/Marabitanas, Alto Rio Negro. A antropóloga e doutoranda da Faculdade de Saúde Pública da USP explica que, ao contrário dos não-indígenas, as comunidades tradicionais zelam pelo elemento, respeitando os processos naturais e espirituais que o cercam. “Com o fogo, cozinhamos nossos alimentos, cuidamos de nossas roças, confeccionamos nossos utensílios. A gente olha para ele como algo que produz o nosso bem-viver. Sem fogo, não há vida.”

Mas os indícios de ocupação humana na Amazônia são anteriores mesmo às TPAs e ao surgimento das primeiras cerâmicas, há cerca de 9.000 anos. 

Patrimônio biocultural

Existem, distribuídos por toda a Amazônia, pelo menos quatro centros independentes onde a cerâmica foi inventada. O sítio arqueológico Teotônio, localizado no curso do rio Madeira, em Rondônia, possui evidências de plantas que são consumidas até hoje no país, como a castanha-do-brasil, o feijão e a abóbora. 

“Neste lugar, nada se destaca na superfície, mas temos, embaixo da terra, depósitos arqueológicos profundos”, afirma o arqueólogo Eduardo Neves. Há presença de muita terra preta de índio, o que indica a circulação dos povos protagonistas da floresta, atores locais que promoveram ações de estímulo e multiplicação em nível social, biológico e natural. Hoje, há comunidades que já têm noção o suficiente sobre o seu papel no mapa da Amazônia e na agenda do clima. 

Um estudo desenvolvido pela WRI Brasil aponta que o fomento da bioeconomia baseada em arranjos produtivos já existentes dentro de comunidades tradicionais poderia aumentar o PIB da região em R$ 40 bilhões até 2050. Da exploração sustentável da castanha à produção de biocosméticos, são muitas as possibilidades.   

Na Calha Norte paraense, em meio aos castanhais situados nas proximidades da comunidade do Cafezal, a cortina de fumaça se mistura ao perfume das cascas da andiroba, queimadas durante à noite para afastar os insetos. A técnica utilizada pelos agroextrativistas, para que repousem e se preparem para o novo dia de coleta, revela o manejo intuitivo dos solos pelos ribeirinhos. 

Nas colocações, como são chamadas as áreas de preservação onde se concentram as castanheiras, Otacílio França Alves, cofundador da Associação dos Moradores Agroextrativistas das Comunidades (Asmacaru), conta sobre a interdependência entre a floresta e a comunidade. “Nós que utilizamos os recursos naturais de forma sensata, sabemos que nossa sobrevivência, e a das futuras gerações, depende da floresta”. Para os moradores do Cafezal, a renda provinda do extrativismo se equipara à essência da atividade, promovida há gerações na zona rural do município de Almeirim.

Caça da anta em floresta de castanhais.
Caboclo extrativista segura uma caça do porco do mato, ou queixada (peso aproximado de 60 quilos). Ambas as fotos são no entorno de Cafezal, no Rio Paru. Fotos: Maurício de Paiva/InfoAmazonia

“A gente não coleta todos os ouriços das castanhas embaixo das árvores. Se tem mil ouriços, por exemplo, coletamos 900 e deixamos cem, que vão alimentar as antas, as cutias e os macacos”, ressalta Otacílio. Desta forma, as criaturas da floresta, sejam humanos ou não humanos, ajudam a disseminar sementes e repor o estoque ecossistêmico. 

Juntos, somos mais fortes

Renata Bergamo Caramez, gestora ambiental e doutora em Recursos Florestais pela Esalq/Universidade de São Paulo, explica que a castanha, além de ser um produto-chave por fazer a ponte da comunidade com o mercado, tem outro elemento que precisa ser levado em consideração: a tradicionalidade. “Ser castanheiro é entender os ciclos das cheias, das secas, os caminhos tortuosos dos igarapés, as trilhas percorridas na mata”, diz.  

Castanheiro descarrega seu paneiro cheio dos ouriços de castanha-do-brasil. Eles amontoam os ouriços para em seguida quebrá-los na floresta próxima ao rio Paru, região da calha norte paraense, importante corredor de biodiversidade amazônica. Ensacam as sementes de castanha e as levam para o beneficiamento. Foto: Maurício de Paiva/InfoAmazonia

A saber que 66 milhões de anos de evolução ajudaram a produzir milhares de tipos de plantas, as quais aliadas ao solo armazenam bilhões de toneladas de carbono, a chamada Nova Economia da Amazônia (NEA), ainda de acordo com a publicação da WRI Brasil, conta com potencial para restaurar 81 milhões de hectares de florestas e acumular 19% de estoque de carbono a mais nos próximos 25 anos.  

Na era da ebulição global, onde o cenário é de esgotamento das reservas naturais, a salvaguarda das populações tradicionais a partir da criação de políticas públicas que deem subsídios para que os amazônidas fortaleçam a autogestão de seus territórios é uma premissa.

Elizângela Baré conta que os processos de ensinamento de como cuidar da roça, de como plantar, a sazonalidade de sol e chuva, tudo teve que mudar em virtude da crise climática. “Nós já não vamos para a roça das 7 da manhã às 6 da tarde, como faziam nossos pais e avós. Quando são 10 da manhã, precisamos voltar porque o calor é insuportável. Isso afeta a nossa cultura e forma de viver”, salienta.  

Para a antropóloga, que também é artesã e agricultora, como um corpo humano cansado, a mãe-terra está doente. E a cura tem que partir de seus filhos: “Estamos gritando como peixes, pássaros, flores. Enquanto todos, sem exceção, não virmos a natureza como parte da família, não conseguiremos minimizar a crise do clima”. A responsabilidade é de toda a humanidade. 

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